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Avesso

Vislumbrar a feiúra, a sombra e o medo, Enfrentar a murada, o incerto, o desapego, Trazer à frente o espectro, a dor, a definição do que é objeção. No susto da combinação de imagens desejadas, Perdidas ao vento, sob folhas desgarradas, Uma árvore de outono tortuosa, Pétalas que um dia floresceram. Volta-se então ao lado sofrido e conhecido, à tacada certeira e desferida em enfrentamento, Ao menor valor da paisagem inóspita, sem vida, E descobre-se a beleza do incógnito. Solidão acompanhada de vultos, Vazio preenchido por ganchos de experiência morta, suplantam a circulação de suas raízes, Mas não encobrem as próprias sementes.

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca. Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperançar louca. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto; Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas inesperadas Como a poesia ou o amor. O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído No papel abandonado Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Abraçados contra a morte. Alexandre O'Neill - 'No Reino da Dinamarca'

Não sei quantas almas tenho

"Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é, Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou. Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser. O que segue não prevendo, O que passou a esquecer. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo : "Fui eu ?" Deus sabe, porque o escreveu. " Fernando Pessoa

Os elementos

O rumorejar das folhas, a velocidade do vento A passagem das nuvens, a rotação da Terra O movimento das águas, A avidez, a sede O arder do fogo, o aquecer das almas As rugas no rosto, a passagem do tempo Os pés descalços, a temperatura do solo Os olhos descobertos, a visão límpida O bem profundo, o mal eterno.
"Desde que chegaste ao mundo do ser, uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses. Primeiro, foste mineral; depois, te tornaste planta, e mais tarde, animal. Como pode isto ser segredo para ti? Finalmente, foste feito homem, com conhecimento, razão e fé. Contempla teu corpo - um punhado de pó - vê quão perfeito se tornou! Quando tiveres cumprido tua jornada, decerto hás de regressar como anjo; depois disso, terás terminado de vez com a terra, e tua estação há de ser o céu." Rumi

Camaleoa

Me virou do avesso Atravessou minha vida Desmereceu o tempo Acabei ferida Acreditou no gesto Entendeu, amargo Não ouviu o protesto o grito abafado Insisti o que pude Investi com afinco Mas em sua inquietude Rasgou-me por dentro Apareceu sem aviso Bagunçou sem querer E agora indeciso Certamente irá perder Porque horas valem muito Madrugadas seguidas Manhãs divididas Por um encontro fortuito Dispersam num passado Lembranças intermitentes Impedem um presente próspero Talvez uma felicidade iminente Fatos que não podem negar Palavras que não podem calar Sensações involuntárias Soluções precárias Me transformei tantas vezes Nesse momento mais uma então Encontrei-me novamente Distribuindo compreensão Camaleoa na floresta Cores que não enxerga Despista o predador Da caça faz-se o caçador

Con Toda Palabra (Llasa de Sela)

Con toda palabra Con toda sonrisa Con toda mirada Con toda caricia Me acerco al agua Bebiendo tu beso La luz de tu cara La luz de tu cuerpo Es ruego el quererte Es canto de mudo Mirada de ciego Secreto desnudo Me entrego a tus brazos Con miedo y con calma Y un ruego en la boca Y un ruego en el alma Con toda palabra Con toda sonrisa Con toda mirada Con toda caricia Me acerco al fuego Que todo lo quema La luz de tu cara La luz de tu cuerpo Es ruego el quererte Es canto de mudo Mirada de ciego Secreto desnudo Me entrego a tus brazos Con miedo y con calma Y un ruego en la boca Y un ruego en el alma

Sujeira

Intupiram meu bueiro, jogaram lixo na minha calçada! O causador do mal cheiro nem medo da repreenda teve ao sujar minha passagem. Testemunhas podem descrevê-lo em detalhes. Em sua sordidez não se apressou ao conspurcar meu canto. Lembro-me que havia acabado de desobstruir o acesso, com o trabalho e dedicação de formiga operária na construção de nova morada. Conquistara o fluxo, a limpeza almejada e, de repente, tudo emporcalhado, encalacrado de novo. Agora além de pás, vassoura, me armarei também de vigilância ostensiva. Quero desafiar o próximo porcalhão que virá, visto que é inegável a repetição do ato, a repetir a façanha sob minha mira. Recomeço a livrar de impurezas minha entrada. Na esperança que se mantenha limpa. Senão, a saída será putrida como a que me impuseram desrespeitosamente.

Angústia

Pensamentos desalinhados. Falta de foco. Olhos embaçados e desatentos. Sabor amargo contínuo na boca. Tensão em todos os músculos. Pulsar descompassado do coração. Sangue sentido por todo o seu percurso. Amortecimento dos sentidos e revirados os sentimentos. Do lado de dentro de um lugar ermo, inóspito. Um piso escorregadio e instável. Ignorar como chegou e muito menos qual será a saída. Ansiar por curar o desvario, sem ter a medicação ou tratamento para o mal. Desassossego da alma, reafirmação da impotência, perdição imperdoável. Gritar em silêncio. Correr sem sair mover-se. Exaurir o corpo com a inércia.

Pára!

Pára, Presta atenção no mundo, A tudo que sentimos juntos, Aos pequenos mimos, Às palavras inesquecíveis. Tenho tanto orgulho de tudo, Das inocentes jogadas, Dos ideais modificados, Às piadas repetidas. Contemplar seus pedaços, Brincar com sua insegurança, Mexer com meus medos, Às amarras imaginárias de nós dois. Emoções confusas que tivemos, Um futuro que não vai acontecer, Sonhos só nossos, Às mentiras que quisemos acreditar. Adorando o pouco tempo, A pouca memória, Ao minúsculo átomo, Vamos rir da raridade!